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domingo, 27 de dezembro de 2015

Impactos da tradição africana/guineense – Parte I: Aspectos Positivos

Este post trata de alguns efeitos positivos da tradição africana/guineense e deverá ser articulado com o próximo texto, que se debruçará sobre alguns aspectos negativos. Só olhando para estas duas facetas podemos compreender a importância da tradição na sociedade africana/guineense.



A esmagadora maioria das tradições da África/Guiné-Bissau caracteriza-se pela “extensibilidade” e pela poligamia. Em África (e em particular na Guiné-Bissau) não é normal uma mulher ter mais do que um marido em simultâneo (poliandria), pois o habitual é um homem ter várias esposas ao mesmo tempo (poligamia) (Dias, 1974 citado por Djaló, 2012: 25-29; Mendes, 2010: 18, 64-65, 81-84).
Com base nesta ordem de ideias, posso destacar alguns aspectos positivos da poligamia de certos [sub]grupos étnicos, por exemplo, uma das questões importantes da tradição africana/guineense está no facto de ter, indirectamente, fornecido à ciência moderna  “ocidental/europeia”  pistas e intuições para as suas descobertas. Embora ninguém tenha referido esta questão explicitamente, considero que os valores associados à matrilinhagem como critério da herança do reinado constituem pistas primitivas para as descobertas efectuadas sobre o ADN. Quem herdava do Régulo era o filho da sua irmã, porque, ao contrário dos seus filhos (que poderiam não ser seus, caso as suas mulheres fossem infiéis), ele tinha a certeza que os seus sobrinhos por parte da sua irmã eram realmente do seu sangue. Ou seja, as tradições antigas, apesar de aparentemente atrasadas, revelavam algumas intuições que só viriam a ser confirmadas mais tarde pela ciência. Aparentemente poderá parecer que este sistema de matrilinhagem esconde uma atitude de valorização da mulher (neste caso, a irmã do Régulo). No entanto, apenas demonstra que a tradição valoriza os laços de sangue, os únicos vínculos fortes o suficiente para escaparem à desconfiança masculina (Kosta, 2007).
Nesta linha de pensamento, Karl Popper (1902-1994) legitima, por um lado, este ponto de vista quando apresenta esta mesma ideia nos seus livros «O Mito do Contexto» e «Conjecturas & Refutações», ao referir que os mitos pré-científicos podem conter importantes antecipações de teorias científicas que poderão só se desenvolver muito mais tarde (Popper, 2006: 62; 2009: 69-70, 250). E, Paul Feyerabend (1924-1994), por outro lado, devido ao seu forte humanismo e à preocupação com o respeito por todas as formas de conhecimento, reconhece que existem diferentes tipos de ciência além da ciência ocidental que, em muitos casos, em nome do “progresso”, destruiu, em muitos locais do mundo (em especial, África/Guiné-Bissau), conhecimentos valiosos e significativos. Indo mais longe, Feyerabend defende que não existe uma fronteira entre ciência e não ciência ou entre ciência e história. Ao contrário, a ciência deve olhar para tudo o que está ao seu dispor (mitos, preconceitos, fantasias, etc.), para melhorar. Deste modo, a ciência seria posta no seu lugar, enquanto uma forma interessante de conhecimento, possuidora de muitas vantagens mas também de muitos inconvenientes (Feyerabend, 1993: 13, 51-55, 214).
Nas minhas entrevistas a vários Régulos da Guiné-Bissau, percebi que este fenómeno está enraizado na tradição de algumas etnias, sendo um costume muito antigo, que se reflecte no acesso a lugares de chefia. (Mango, 27-05-2013). De um modo geral, não é aconselhável o casamento de um Régulo com as mulheres de outras etnias, porque altera o direito de sucessão – «Era proibido, naturalmente. Porque o filho que resulta desse casamento carece de legitimidade para ser Régulo, caso houver um candidato de peso ao trono/Poder, por causa dos quatro avós da linhagem do Régulo [princípio “4 dona”] (…) é possível casar com alguém de uma etnia diferente, mas o filho do Régulo terá dificuldade em ficar no Trono/Poder» (Cá, 27-05-2013; Mango, 27-05-2013; Mendes, 2010: 69-74).
Hoje em dia, verificamos o impacto desse costume muito antigo na sociedade guineense, nomeadamente através da Constituição da República da Guiné-Bissau «CRGB», que define como critério de elegibilidade para o lugar de Presidente da República «PR» o facto de se ter quatro avós guineenses (CRGB, 1996, artigo 63º; Kosta, 2007: 221, 712-718; Silva, 2010: 9, 221). A CRGB é uma cópia da Constituição da República Portuguesa «CRP» (2003: 55 art.-122º), que também importou este princípio da monarquia portuguesa. Sendo assim, não tem razão quem fundamenta que, na realidade, a tradição não tem um papel activo no Estado pós-colonial guineense, porque a tradição guineense enquadrou-se na democracia do Estado pós-colonial ao mais alto nível da hierarquia do Poder (Kosta, 2004: 62-79). Se África é o berço da Humanidade, temos aqui a prova de que essa origem não está perdida.
Devido à existência de famílias muito numerosas e à falta de meios de subsistência, é frequente os africanos/guineenses entregarem a educação dos seus filhos a familiares ou amigos com mais meios e possibilidades. Este facto gera, muitas vezes, rupturas e conflitos intrafamiliares que se perpetuam por gerações. Estas práticas sociológicas poderiam ser a base para o surgimento das novas instituições características das sociedades modernas ocidentais no que respeita aos serviços sociais (creches, infantários e eventualmente residências estudantis). Estes serviços são importantes para a criação de emprego e para valorização do mérito dos cidadãos africanos/guineenses (Djaló, 2012; Kosta, 2004; 2007; Lopes, 1999; Obenga, 2013).
No entanto, aceito o conselho do Professor Catedrático Viriato Soromenho-Marques quando admite que existe um risco muito grande de as elites pós-coloniais africanas/guineenses, autóctones, poderem cortar com a tradição, pensando que a tradição está ligada a aspectos negativos quando, «na verdade, a tradição é grande parte daquilo que nós somos, não é? E nós temos que respeitar as nossas raízes. Portanto, a modernidade não significa esquecer (…) significa seguir em frente, lembrando tudo aquilo que se viveu…Eu diria que qualquer política democrática no futuro da Guiné-Bissau/África vai ter de investir muito no papel da história, no papel da cultura, no papel da governação das pequenas comunidades (…)» (Soromenho-Marques, 20-09-2013).
Bem trabalhadas, as tradições poderão tornar a sociedade e a convivência entre africanos/guineenses melhores. Mas, para salvaguardar estas fontes de conhecimento, será necessário complementar as tradições orais com as tradições escritas. E distinguir aquilo que é benéfico e deve ser preservado, daquilo que põe em causa o bem-estar e a dignidade dos cidadãos. No próximo post procurarei complementar estas ideias, debruçando-me, desta vez, sobre os aspectos negativos da tradição, que poderão ser melhorados.

Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador – Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau (pp. 57-58, 225, 246, 258, 264-265, 272-274, 457-458). Lisboa: Chiado Editora.


1 comentário:

  1. Meu nome é Okamte Zabane. Sou natural da Ilha de Pecixe, de família real. Herda-se a “reinança” através da linhagem materna.
    Em 19 de outubro de 1955, com apenas 21 anos de idade e sem muita experiência, eu fui consagrado Rei da Ilha de Pecixe. O Estado me concedeu um conselheiro. Seu nome era Manoel da Silva que reuniu certos homens e decidiu que deveria construir uma casa nova com todo o conforto para o regúlo Okamte pudesse reinar com toda liberdade. Régulo é o nome que dão ao rei de uma pequena nação.
    Não me foi permitido ocupar a antiga casa real. Segundo o conselheiro, a casa estava velha. Eu teria a minha própria casa. Durante todo o tempo da construção também fui proibido de ver o que estava acontecendo.
    Somente depois de pronta tive a permissão de entrar nela. Na sua inauguração, seguida da posse, houve seis dias e seis noites de festa. Havia muita carne, bastante vinho, música e danças. https://apalavracomoe.blogspot.com.br/

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