Quem é que governa e lidera a Guiné-Bissau? Será que os guineenses lutaram mesmo para a independência nacional ou foi para a dependência internacional? Será que a independência trouxe uma melhor vida ao povo guineense? Deixar nas mãos dos estrangeiros a tomada de decisões político-militares e jurídico-políticas não é tratar os quadros guineenses como incompetentes? Para que servem os estudos dos quadros guineenses? Continuaremos a reflectir sobre estas questões.
Caros
leitores, as trapalhadas políticas
em curso na Guiné-Bissau, tendo o PAIGC
como “a cabeça do polvo”, confirmam
que a minha tese está bem-encaminhada
no que toca a urgência da reforma
política. Ao longo dos meus estudos, tenho
sido da opinião que “as ressacas”
de «conflitos de ordem histórica»
ainda se reflectem na instabilidade da Democracia
guineense – ou
seja, nos «conflitos de ordem
contemporânea». Tudo isto teve a sua génese no Congresso de Cassacá de 13 a 17 de Fevereiro de 1964, onde o PAIGC,
na tentativa de organizar o partido,
criou as Forças Armadas Revolucionárias do Povo «FARP[1]»
(agora, Forças Armadas da Guiné-Bissau «FAGB»)
como o seu braço armado. Após a
independência, os combatentes
(veteranos da guerra) com algumas
habilitações mudaram-se para o braço
político (PAIGC) e os que não tinham
habilitações ficaram no braço armado
(FARP/FAGB).
Este
aspecto do parágrafo anterior é
importante, na medida em que me
permite perceber que os [sub]grupos étnicos maioritários do
PAIGC (Balantas, Mandingas, Pepéis, Beafadas, Bijagós e Felupes) que ficaram
nas FARP/FAGB como braço armado
do regime político não tinham habilitações, devido às barreiras que o sistema colonial
lhes tinha criado. Estas barreiras
reflectiam-se também nos acessos
restritos às principais cidades do país, incluindo a falta de habitações, documentos e empregos por causa do estatuto de indígena. Após
a independência, esses [sub]grupos étnicos instalaram-se nos antigos quartéis dos portugueses herdados pelos militares guineenses, que, além de serem vistos e encarados
como atrasados, não tinham onde receber
os seus familiares. Hoje em dia, esses quartéis transformaram-se em novas habitações para os familiares de muitos militares, sem limites definidos para as propriedades de uso exclusivo dos
militares, o que pode trazer consequências
nefastas.
As
diferenças ao nível das habilitações entre
os antigos combatentes do PAIGC reflectem-se nas visíveis desigualdades sociais galopantes, que
são uma das causas dos conflitos político-militares.
A ponte que estabeleço enquadra-se na
seguinte leitura: os antigos combatentes com mais habilitações/qualificações
gozam de certas regalias/condições políticas e económicas que dignificam os
seus estatutos sociais; enquanto os
antigos combatentes desprovidos dos referidos atributos que ficam nos quartéis, vivem nas piores condições sociais, económicas e políticas, etc.
Os
defensores da filosofia política de Amílcar Cabral e da reforma do sector de defesa/segurança – «os neo-cabralistas
e os pró-PAIGC» – na Guiné-Bissau não batem, muitas vezes, na mesma tecla com aquilo que Amílcar Cabral
verdadeiramente defendia. Amílcar
Cabral defendia, por um lado, que «a
acção política deve sempre proceder e ultrapassar em prioridade a acção
militar; a acção armada deve ser sempre determinada por considerações
políticas»; ou seja, «toda a
importância da Guiné-Bissau e de Cabo Verde assentam na sua importância política» (Oramas,
1998: 59, 131-135). Com base nestas palavras
de Amílcar Cabral, como Sociólogo-Politicólogo, afirmo que estas ideias são actuais, porque provam
que sem a reforma/modernização política e do PAIGC, dificilmente a reforma/modernização
militar/sector de defesa e segurança produzirá
efeitos benéficos para a estabilidade
política da Guiné-Bissau. Ou seja, para Amílcar Cabral, a reforma/modernização
política e do PAIGC é mais prioritária que
a reforma/modernização militar/sector de defesa e segurança.
Por outro
lado, se o
próprio Amílcar Cabral[2] defendia que “nem toda a gente é do PAIGC” (Cabral, 1983: 103-114;
Sousa, 2012: 178) e portanto também nem “toda a gente” deve ser neo-cabralista,
por que razão o PAIGC e os
neo-cabralistas querem fazer com que
“toda a gente” ou todo o Estado da Guiné-Bissau – «povo/nação, território e
Aparelho do Poder do Estado» – seja do
PAIGC e dos neo-cabralistas? Por o PAIGC ser
um partido-Estado, verifico que há
um paradoxo quando os defensores do cabralismo e pró-PAIGC recorrem ao seu projecto como solução para
a Guiné-Bissau (Nóbrega, 2003: 308-309), sem
assumirem, contudo, as suas palavras
e os seus erros. No meu entender, não compensa muito a estes defensores invocar em vão o nome de Amílcar Cabral,
imputando-lhe palavras que ele não disse.
Espero
que estes defensores do cabralismo e pró-PAIGC tenham em consideração que o problema
da Guiné-Bissau é muito mais que um problema militar, e na melhor das hipóteses é provável que o Poder militar possa (bem gerido) ajudar
a solucionar o problema político e contribuir
para o desenvolvimento da
Guiné-Bissau. Ou seja, que as actuais
crises políticas provam que o principal
problema do país reside no campo
político e na mudança de
mentalidades agravada pela falta de
investimento na educação para a formação de recursos humanos necessários em todas as facetas da sociedade.
Quando
se trata de saber se o problema de raiz é essencialmente político ou militar,
dois grandes homens por mim entrevistados – «Viriato Soromenho-Marques e
Alfredo Handem» – mostram uma forte sintonia dos seus pontos de vista. Por um lado, o Professor Soromenho-Marques diz-nos
que «[…] o problema é essencialmente de natureza política, porque a parte
militar decorre da parte política […]» (Soromenho-Marques, 20-09-2013); por outro lado, face à mesma questão, o
Professor Alfredo Handem responde: «[…] Eu penso que são os dois problemas. Mas o problema militar é um problema que advém do problema político, portanto, uma
gestão deficitária das coisas públicas, agravada por conflitos inter/intra
partidários […]» (Handem, 03-05-2013).
Para
mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015).Modelo Político Unificador - Novo Paradigma
de Governação na Guiné-Bissau (pp. 173-177, 263). Lisboa: Chiado Editora.
[1] Por estas razões, para muitos
combatentes, ser militar é ainda sinónimo de ser do PAIGC, em parte por causa
do artigo-4º da Constituição da República da Guiné-Bissau «CRGB» de 1973 e
1984, que legitimava o PAIGC como força política e dirigente da sociedade. Apesar
de este artigo ser revisto formalmente em 1991 com a abertura democrática, em
nada se alterou a mentalidade, o discurso e o procedimento dos seus militantes.
Nessa fase da transição para a Democracia - «que se trata de conflito de ordem
contemporânea» - teria sido
importante que o Estado guineense impedisse que o PAIGC “partido-Estado” se
transformasse num partido político, levando consigo todas as propriedades do
Estado, por si criadas – a identidade guineense, a CRGB, a Assembleia Nacional
Popular “ANP”, as FARP [agora é Forças Armadas da Guiné-Bissau «FAGB»], a
bandeira do Estado, o hino nacional, o facto de ter dado a independência ao
país. Tendo em conta que o próprio PAIGC não passava de um Movimento de
Libertação Nacional (MLN), as propriedades do Estado deveriam permanecer
independentemente de um eventual desaparecimento do partido político. Por estas
razões, elas deveriam ser totalmente independentes de qualquer relação com
organizações partidárias (Mendes, 2010: 17-39, 70-89).
[2] Amílcar
Cabral utilizou como slogan, no início da sua mobilização, a expressão
“toda a gente é do partido [PAIGC]”. No entanto, quando ganhou protagonismo e
carisma, mudou de slogan, legitimando que "nem toda a gente é do partido
[PAIGC]". Para mim Politicólogo, ambos os slogans cabem na metáfora do
velho e do novo testamento – os defensores da filosofia política de Amílcar
Cabral deveriam usar e aplicar o novo testamento (segundo slogam),
salvando o PAIGC de ser um partido-Estado e cumprindo que “nem toda a gente é
neo-cabralista” (Cabral, 1983: 105-106).
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