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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Há boas razões para os militares exigirem a reforma política na Guiné-Bissau

Quem é que governa e lidera a Guiné-Bissau? Será que os guineenses lutaram mesmo para a independência nacional ou foi para a dependência internacional? Será que a independência trouxe uma melhor vida ao povo guineense? Deixar nas mãos dos estrangeiros a tomada de decisões político-militares e jurídico-políticas não é tratar os quadros guineenses como incompetentes? Para que servem os estudos dos quadros guineenses? Continuaremos a reflectir sobre estas questões.

Caros leitores, as trapalhadas políticas em curso na Guiné-Bissau, tendo o PAIGC como “a cabeça do polvo”, confirmam que a minha tese está bem-encaminhada no que toca a urgência da reforma política. Ao longo dos meus estudos, tenho sido da opinião que “as ressacas” de «conflitos de ordem histórica» ainda se reflectem na instabilidade da Democracia guineense – ou seja, nos «conflitos de ordem contemporânea». Tudo isto teve a sua génese no Congresso de Cassacá de 13 a 17 de Fevereiro de 1964, onde o PAIGC, na tentativa de organizar o partido, criou as Forças Armadas Revolucionárias do Povo «FARP[1]» (agora, Forças Armadas da Guiné-Bissau «FAGB») como o seu braço armado. Após a independência, os combatentes (veteranos da guerra) com algumas habilitações mudaram-se para o braço político (PAIGC) e os que não tinham habilitações ficaram no braço armado (FARP/FAGB).
Este aspecto do parágrafo anterior é importante, na medida em que me permite perceber que os [sub]grupos étnicos maioritários do PAIGC (Balantas, Mandingas, Pepéis, Beafadas, Bijagós e Felupes) que ficaram nas FARP/FAGB como braço armado do regime político  não tinham habilitações, devido às barreiras que o sistema colonial lhes tinha criado. Estas barreiras reflectiam-se também nos acessos restritos às principais cidades do país, incluindo a falta de habitações, documentos e empregos por causa do estatuto de indígena. Após a independência, esses [sub]grupos étnicos instalaram-se nos antigos quartéis dos portugueses herdados pelos militares guineenses, que, além de serem vistos e encarados como atrasados, não tinham onde receber os seus familiares. Hoje em dia, esses quartéis transformaram-se em novas habitações para os familiares de muitos militares, sem limites definidos para as propriedades de uso exclusivo dos militares, o que pode trazer consequências nefastas.
As diferenças ao nível das habilitações entre os antigos combatentes do PAIGC reflectem-se nas visíveis desigualdades sociais galopantes, que são uma das causas dos conflitos político-militares. A ponte que estabeleço enquadra-se na seguinte leitura: os antigos combatentes com mais habilitações/qualificações gozam de certas regalias/condições políticas e económicas que dignificam os seus estatutos sociais; enquanto os antigos combatentes desprovidos dos referidos atributos que ficam nos quartéis, vivem nas piores condições sociais, económicas e políticas, etc.
Os defensores da filosofia política de Amílcar Cabral e da reforma do sector de defesa/segurança – «os neo-cabralistas e os pró-PAIGC» – na Guiné-Bissau não batem, muitas vezes, na mesma tecla com aquilo que Amílcar Cabral verdadeiramente defendia. Amílcar Cabral defendia, por um lado, que «a acção política deve sempre proceder e ultrapassar em prioridade a acção militar; a acção armada deve ser sempre determinada por considerações políticas»; ou seja, «toda a importância da Guiné-Bissau e de Cabo Verde assentam na sua importância política» (Oramas, 1998: 59, 131-135). Com base nestas palavras de Amílcar Cabral, como Sociólogo-Politicólogo, afirmo que estas ideias são actuais, porque provam que sem a reforma/modernização política e do PAIGC, dificilmente a reforma/modernização militar/sector de defesa e segurança produzirá efeitos benéficos para a estabilidade política da Guiné-Bissau. Ou seja, para Amílcar Cabral, a reforma/modernização política e do PAIGC é mais prioritária que a reforma/modernização militar/sector de defesa e segurança.
Por outro lado, se o próprio Amílcar Cabral[2] defendia que “nem toda a gente é do PAIGC” (Cabral, 1983: 103-114; Sousa, 2012: 178) e portanto também nem “toda a gente” deve ser neo-cabralista, por que razão o PAIGC e os neo-cabralistas querem fazer com que “toda a gente” ou todo o Estado da Guiné-Bissau – «povo/nação, território e Aparelho do Poder do Estado» – seja do PAIGC e dos neo-cabralistas? Por o PAIGC ser um partido-Estado, verifico que há um paradoxo quando os defensores do cabralismo e pró-PAIGC recorrem ao seu projecto como solução para a Guiné-Bissau (Nóbrega, 2003: 308-309), sem assumirem, contudo, as suas palavras e os seus erros. No meu entender, não compensa muito a estes defensores invocar em vão o nome de Amílcar Cabral, imputando-lhe palavras que ele não disse.
Espero que estes defensores do cabralismo e pró-PAIGC tenham em consideração que o problema da Guiné-Bissau é muito mais que um problema militar, e na melhor das hipóteses é provável que o Poder militar possa (bem gerido) ajudar a solucionar o problema político e contribuir para o desenvolvimento da Guiné-Bissau. Ou seja, que as actuais crises políticas provam que o principal problema do país reside no campo político e na mudança de mentalidades agravada pela falta de investimento na educação para a formação de recursos humanos necessários em todas as facetas da sociedade.
Quando se trata de saber se o problema de raiz é essencialmente político ou militar, dois grandes homens por mim entrevistados – «Viriato Soromenho-Marques e Alfredo Handem» – mostram uma forte sintonia dos seus pontos de vista. Por um lado, o Professor Soromenho-Marques diz-nos que «[…] o problema é essencialmente de natureza política, porque a parte militar decorre da parte política […]» (Soromenho-Marques, 20-09-2013); por outro lado, face à mesma questão, o Professor Alfredo Handem responde: «[…] Eu penso que são os dois problemas. Mas o problema militar é um problema que advém do problema político, portanto, uma gestão deficitária das coisas públicas, agravada por conflitos inter/intra partidários […]» (Handem, 03-05-2013).

Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015).Modelo Político Unificador - Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau (pp. 173-177, 263). Lisboa: Chiado Editora.




[1] Por estas razões, para muitos combatentes, ser militar é ainda sinónimo de ser do PAIGC, em parte por causa do artigo-4º da Constituição da República da Guiné-Bissau «CRGB» de 1973 e 1984, que legitimava o PAIGC como força política e dirigente da sociedade. Apesar de este artigo ser revisto formalmente em 1991 com a abertura democrática, em nada se alterou a mentalidade, o discurso e o procedimento dos seus militantes. Nessa fase da transição para a Democracia - «que se trata de conflito de ordem contemporânea» - teria sido importante que o Estado guineense impedisse que o PAIGC “partido-Estado” se transformasse num partido político, levando consigo todas as propriedades do Estado, por si criadas – a identidade guineense, a CRGB, a Assembleia Nacional Popular “ANP”, as FARP [agora é Forças Armadas da Guiné-Bissau «FAGB»], a bandeira do Estado, o hino nacional, o facto de ter dado a independência ao país. Tendo em conta que o próprio PAIGC não passava de um Movimento de Libertação Nacional (MLN), as propriedades do Estado deveriam permanecer independentemente de um eventual desaparecimento do partido político. Por estas razões, elas deveriam ser totalmente independentes de qualquer relação com organizações partidárias (Mendes, 2010: 17-39, 70-89).
[2] Amílcar Cabral utilizou como slogan, no início da sua mobilização, a expressão “toda a gente é do partido [PAIGC]”. No entanto, quando ganhou protagonismo e carisma, mudou de slogan, legitimando que "nem toda a gente é do partido [PAIGC]". Para mim Politicólogo, ambos os slogans cabem na metáfora do velho e do novo testamento – os defensores da filosofia política de Amílcar Cabral deveriam usar e aplicar o novo testamento (segundo slogam), salvando o PAIGC de ser um partido-Estado e cumprindo que “nem toda a gente é neo-cabralista” (Cabral, 1983: 105-106).

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