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terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Impactos da tradição africana/guineense – Parte II: Aspectos Negativos

Este post trata de alguns efeitos negativos da tradição africana/guineense e deverá ser articulado com o anterior texto da Parte I, que se debruça sobre alguns aspectos positivos. Como já vos disse, só olhando para estas duas facetas podemos compreender a importância da tradição na sociedade africana/guineense, com destaque para o debate dos prós & contras a importação/cópia de modelos ocidentais.

A esmagadora maioria das tradições da África/Guiné-Bissau caracteriza-se pela “extensibilidade” e pela poligamia. Em África (e em particular na Guiné-Bissau) não é normal uma mulher ter mais do que um marido em simultâneo (poliandria), pois o habitual é um homem ter várias esposas ao mesmo tempo (poligamia) (Dias, 1974 citado por Djaló, 2012: 25-29; Mendes, 2010: 18, 64-65, 81-84).
Com base nesta ordem de ideias, posso destacar alguns aspectos negativos da poligamia de certos [sub]grupos étnicos. Por exemplo, um dos problemas da tradição africana/guineense está nos usos e costumes da esmagadora maioria das etnias, onde são os homens e os Régulos/Chefes tradicionais que detêm os Poderes de decisão para escolherem as mulheres com quem querem casar. Um bom exemplo disto é, por um lado, Ocante Adjibane, Régulo entre os Manjacos, que diz sobre a sua vida em 1955: «Na altura em que comecei a ser Régulo, as coisas eram diferentes. O uso era mais forte que a lei [colonial]. Era o uso que mandava. Era o Régulo que mandava. Casava com quem quisesse e nessa altura tinha-me casado com 33 mulheres» (Carvalho, 2000: 48).
Por outro lado, O próprio Amílcar Cabral considerava que, em Africa e na Guiné-Bissau, o «sistema económico e social era de escravatura, embora com características próprias», mesmo antes de os “brancos/europeus” iniciarem a escravatura. Ou seja, «os rapazes de um Régulo não são mais do que escravos […] dão-lhes comida, têm filhos, mas todos os filhos são criados [escravos] daquele mesmo homem “grande”! […] Então para nós africanos, com a nossa ideia de escravatura, estávamos abertos para arranjar escravos para outra gente». Com estas palavras, Amílcar Cabral legitima aquilo que alguns brancos/portugueses justificavam como «comprar escravos que já eram escravos» e aquilo que Frantz Fanon defendia – «muitas vezes, o inimigo do negro/africano não é o branco/europeu, mas o seu congénere» negro/africano (Cabral, 2008: 112, 121-122; Carvalho, 2003: 37–43, 53-55; Fanon, 1980: 21; Kosta, 2004: 62-83; 2007: 160-247; Nóbrega, 2003: 165-166; Oramas, 1998: 60-61, 136-137).
Estas palavras de Amílcar Cabral e do Régulo Ocante Adjibane são ainda muito actuais, uma vez que se tem assistido actualmente a uma revitalização e recuperação das figuras de Poderes tradicionais, e em muitos lugares da Guiné-Bissau ainda é o Régulo que manda. Pela mesma diversidade étnica guineense, quase todos os [sub]grupos étnicos têm a poligamia como prática de casamento, da qual nascem, geralmente, muitos filhos que vão constituir a força produtiva principal e, por conseguinte a força geradora de rendimentos para a família e para a comunidade (Carvalho, 2000: 48; Lopes, 1982: 34-35). O facto de os africanos em geral, e os guineenses em particular, insistirem em ter várias mulheres e dezenas de filhos, contribui, muitas vezes, para o agravamento da pobreza. Porque acaba por ser quase impossível para algumas pessoas garantirem sustento para famílias tão numerosas. Para além disto, se não houver forma de sustentar numerosos filhos, acabará por não haver meios para os mandar para a escola (e assegurar os seus estudos), agravando os problemas de analfabetismo e iliteracia de que padece a África/Guiné-Bissau. Mas o pior de tudo é quando a falta de meios incentiva o chefe da família a recorrer a actos desviantes como forma de fazer cobro à referida situação, tais como o acto de dar em casamento raparigas menores, o roubo, a corrupção, o narcotráfico, etc.
O meu ponto de vista como Sociólogo e Politicólogo africano/guineense bate também na mesma tecla que as ideias dos Sociólogos Zygmunt Bauman e Anthony Giddens, e do Papa Francisco relativamente aos filhos nas sociedades desenvolvidas contemporâneas. Nesta linha do pensamento, o Papa Francisco advertiu que não é preciso ter “filhos como coelhos” para ser considerado um “bomcatólico/pai. Nesta advertência, o Papa declarou ainda que o número ideal de filhos por casal, geralmente recomendado por especialistas, é de três crianças. A autoridade máxima da Igreja católica argumentou que é preciso usar a razão para que a sociedade se consciencialize da importância de uma “paternidade responsável”. Esta chamada de atenção do Papa está em sintonia com o pensamento Sociológico de Zygmunt Bauman e Anthony Giddens, quando dizem que o filho deixou de ser uma fonte de mão-de-obra para constituir um passaporte para a “imortalidade” de cada um. Ou seja, as nossas atitudes em relação aos filhos e às formas de os proteger alteraram-se radicalmente durante as últimas gerações. Apreciamos tanto os filhos, em parte, porque eles se tornaram muito raros, e em parte, porque a decisão de ter um filho tem motivações diferentes das que tinha em gerações anteriores. Na família tradicional, os filhos eram um recurso de natureza económica. No mundo dos nossos dias, um filho constitui, pelo contrário, um pesado fardo financeiro e social para os pais. Ter um filho é uma decisão mais pesada e amadurecida do que costumava ser, porque exige uma decisão induzida por necessidades psicológicas, emocionais, sociais, económicas e políticas (Bauman, 2001: 62; Diário da Manhã, 20-01-2015; Giddens, 2006: 64; Mendes, 2010: 64).
São estes ensinamentos que os defensores da poligamia e da tradição precisam de transmitir aos africanos/guineenses em geral, e aos mais de 120 Régulos/Chefes tradicionais em particular na Guiné-Bissau, todos eles homens (Kosta, 2007: 277-281).
Este post já vai muito longo, mas há ainda muitos aspectos fundamentais para enriquecer este debate, nomeadamente: a questão da transmissão de doenças infecto-contagiosas (SIDA, etc.), a implicação do princípio de “4 dona” da Constituição da República da Guiné-Bissau, a desigualdade entre os homens e mulheres, a dúvida se um homem com muitas mulheres trabalha, e se consegue satisfazê-las todas ou admite implicitamente que elas se envolvem com outros homens (uma vez que deposita mais confiança no filho da sua irmã para sucedê-lo no Trono/Poder), etc. Deixarei estes assuntos para o próximo post, onde apresentarei também algumas propostas de mudança.

            Para mais informações, consultar o meu livro: Mendes, Livonildo Francisco (2015). Modelo Político Unificador – Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau (pp. 239-240; 251-254). Lisboa: Chiado Editora. 

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