Este post trata de alguns efeitos negativos da tradição africana/guineense e
deverá ser articulado com o anterior texto da Parte I, que se debruça sobre alguns aspectos positivos. Como já vos disse,
só olhando para estas duas facetas podemos compreender a importância da tradição
na sociedade africana/guineense, com destaque
para o debate dos prós & contras a importação/cópia
de modelos ocidentais.
A esmagadora
maioria das tradições da África/Guiné-Bissau caracteriza-se pela “extensibilidade”
e pela poligamia. Em África (e
em particular na Guiné-Bissau) não é normal uma mulher ter mais do que um
marido em simultâneo (poliandria), pois o habitual é um homem ter
várias esposas ao mesmo tempo (poligamia) (Dias, 1974 citado por Djaló,
2012: 25-29; Mendes, 2010: 18, 64-65, 81-84).
Com base nesta ordem de ideias, posso destacar alguns aspectos negativos da poligamia de certos [sub]grupos étnicos. Por
exemplo, um dos problemas da tradição africana/guineense está nos usos e costumes
da esmagadora maioria das etnias, onde são
os homens e os Régulos/Chefes tradicionais que detêm os Poderes de decisão para escolherem as
mulheres com quem querem casar. Um bom exemplo disto é, por um lado, Ocante Adjibane, Régulo entre os
Manjacos, que diz sobre a sua vida em 1955: «Na altura em que comecei a ser
Régulo, as coisas eram diferentes. O uso
era mais forte que a lei [colonial]. Era o uso que mandava. Era o Régulo
que mandava. Casava com quem quisesse e nessa altura tinha-me casado com 33 mulheres» (Carvalho, 2000: 48).
Por outro lado, O próprio Amílcar Cabral considerava que, em Africa e na Guiné-Bissau, o
«sistema económico e social era de escravatura,
embora com características próprias», mesmo antes de os “brancos/europeus”
iniciarem a escravatura. Ou seja, «os
rapazes de um Régulo não são mais do que escravos […] dão-lhes comida, têm
filhos, mas todos os filhos são criados
[escravos] daquele mesmo homem “grande”!
[…] Então para nós africanos, com a nossa ideia de escravatura, estávamos abertos para arranjar escravos para
outra gente». Com estas palavras, Amílcar Cabral legitima aquilo que alguns brancos/portugueses justificavam como «comprar
escravos que já eram escravos» e aquilo que Frantz Fanon defendia – «muitas vezes, o inimigo do negro/africano
não é o branco/europeu, mas o seu congénere» negro/africano (Cabral, 2008: 112, 121-122; Carvalho, 2003: 37–43,
53-55; Fanon, 1980: 21; Kosta, 2004: 62-83; 2007: 160-247; Nóbrega, 2003:
165-166; Oramas, 1998: 60-61, 136-137).
Estas palavras de Amílcar Cabral e do Régulo Ocante Adjibane são ainda muito
actuais, uma vez que se tem assistido actualmente a uma revitalização e recuperação das figuras de Poderes tradicionais, e em muitos lugares da Guiné-Bissau
ainda é o Régulo que manda. Pela mesma diversidade étnica guineense, quase
todos os [sub]grupos étnicos têm a poligamia
como prática de casamento, da qual
nascem, geralmente, muitos filhos
que vão constituir a força produtiva
principal e, por conseguinte a força geradora de rendimentos para a família
e para a comunidade (Carvalho, 2000: 48; Lopes, 1982: 34-35). O facto de os africanos em geral, e os guineenses
em particular, insistirem em ter várias mulheres e dezenas de filhos, contribui, muitas vezes, para o agravamento da pobreza. Porque acaba
por ser quase impossível para algumas pessoas garantirem sustento para famílias tão numerosas. Para além disto,
se não houver forma de sustentar numerosos filhos, acabará por não haver meios
para os mandar para a escola (e
assegurar os seus estudos), agravando os problemas de analfabetismo e iliteracia
de que padece a África/Guiné-Bissau. Mas o pior de tudo é quando a falta de meios incentiva o chefe da família
a recorrer a actos desviantes como
forma de fazer cobro à referida situação,
tais como o acto de dar em casamento raparigas menores, o roubo, a corrupção, o narcotráfico, etc.
O meu ponto de vista como Sociólogo
e Politicólogo africano/guineense bate também na mesma tecla que as ideias dos Sociólogos
Zygmunt Bauman e Anthony Giddens, e do Papa Francisco relativamente aos filhos
nas sociedades desenvolvidas contemporâneas. Nesta linha do pensamento, o Papa Francisco advertiu que não é
preciso ter “filhos como coelhos”
para ser considerado um “bom” católico/pai. Nesta advertência, o Papa
declarou ainda que o número ideal de filhos por casal, geralmente
recomendado por especialistas, é de três crianças. A autoridade máxima da
Igreja católica argumentou que é preciso
usar a razão para que a sociedade se
consciencialize da importância de uma “paternidade
responsável”. Esta chamada de atenção do Papa está em sintonia
com o pensamento Sociológico de Zygmunt Bauman
e Anthony Giddens, quando dizem que o filho deixou de ser uma fonte de
mão-de-obra para constituir um passaporte
para a “imortalidade” de cada um. Ou
seja, as nossas atitudes em relação
aos filhos e às formas de os
proteger alteraram-se radicalmente durante
as últimas gerações. Apreciamos
tanto os filhos, em parte, porque
eles se tornaram muito raros, e em parte, porque a decisão de ter um
filho tem motivações diferentes das
que tinha em gerações anteriores. Na família
tradicional, os filhos eram um recurso
de natureza económica. No mundo dos
nossos dias, um filho constitui, pelo contrário, um pesado fardo financeiro e social para os pais. Ter um filho é uma decisão mais pesada e amadurecida do que costumava ser, porque exige uma decisão induzida
por necessidades psicológicas, emocionais, sociais, económicas e políticas (Bauman, 2001: 62; Diário da
Manhã, 20-01-2015; Giddens, 2006: 64; Mendes, 2010: 64).
São estes ensinamentos que os defensores
da poligamia e da tradição precisam de transmitir aos africanos/guineenses em
geral, e aos mais de 120 Régulos/Chefes
tradicionais em particular na Guiné-Bissau, todos eles homens (Kosta, 2007: 277-281).
Este post já vai muito longo, mas há ainda muitos aspectos fundamentais
para enriquecer este debate, nomeadamente:
a questão da transmissão de doenças
infecto-contagiosas (SIDA, etc.), a implicação do princípio de “4 dona” da Constituição da República da Guiné-Bissau, a desigualdade entre os homens
e mulheres, a dúvida se um homem com muitas mulheres trabalha, e se consegue
satisfazê-las todas ou admite implicitamente que elas se envolvem com outros
homens (uma vez que deposita mais confiança no filho da sua irmã para sucedê-lo
no Trono/Poder), etc. Deixarei estes assuntos para o próximo post, onde apresentarei também algumas propostas de
mudança.
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